"O sistema penal está repleto de doutores. Muitos deles nunca entraram numa penitenciária e passam longe da periferia com medo de serem assaltados, mas são eles que decidem sobre a conduta social e sobre a personalidade dos habitantes desses locais, para onde se conserva apontada a mira do poder repressivo."
Luís Carlos Valois
O sistema penal está repleto de doutores. Muitos deles nunca entraram numa penitenciária e passam longe da periferia com medo de serem assaltados, mas são eles que decidem sobre a conduta social e sobre a personalidade dos habitantes desses locais, para onde se conserva apontada a mira do poder repressivo.
Esses habitantes, objeto do sistema, que não freqüentaram faculdades e falam outro dialeto, também são obrigados a se portar de acordo com as regras de conduta estipuladas pelos doutores, criando-se assim um vazio que a legalidade do sistema penal não pode preencher (Eugênio Raul Zaffaroni, in "Em busca das penas perdidas", Revan, 4ª Ed. 1999, pg. 29).
Da idéia que os operadores do direito têm da lei e de seu objeto, muito tem sido dito, mas também é importante saber qual é o nível de consciência que o outro lado, o cidadão do direito penal, tem da norma que busca orientá-lo, até porque o desconhecimento dela é inescusável, podendo-se com isso avaliar inclusive o nível de legitimidade do sistema.
Por isso fui buscar em uma das formas de manifestação dos apenados, subsídio para extrair o seu grau de conhecimento da norma, no caso a penitenciária. Trata-se do "catatau", que, na linguagem carcerária do Amazonas, é a carta que o preso envia a qualquer autoridade, sendo que tal nome tem origem na visão que o interno tem da mesa dos doutores, local onde está acostumado a ver um catatau de papel.
Tenho um "catatau" em mãos, enviado ao Juízo da Vara de Execuções Criminais, e vou transcrevê-lo como foi escrito para não dissimular a dificuldade de comunicação que só faz acentuar o já referido vazio.
Com a palavra o apenado: "Ilustríssimo Senhor Juiz. Vossa Exelência bom dia, ou boa tarde conforme o senhor lê esta carta, venho humildemente pedi um poco de sua fidalga atenção por mim, pois meu nome é [...] por favor dentro das suas condições analise o meu caso, só tenho a lhe agradecer do fundo do meu coração pela atenção..."
Todas essas cartas iniciam e terminam com muita reverência ou até mesmo bajulação, o que não é comum no mundo dos presos, onde o respeito deriva do medo, mas para eles parece ser um tratamento necessário no meio das autoridades, o que não deixa de ser verdade em alguns casos.
O apenado: "...Vossa Exelência eu tenho 7 anos e 7 messes preso no fechado, tenho 4 anos trabalhado fora que ganho 1 ano de remisão, no total eu fico com 8 anos e 7 meses puxado..."
O instituto da remição já criou raízes na comunidade carcerária e, afora erros de cálculo, todos têm conhecimento do abatimento de pena que a atividade laboral lhes trará, fato este que só faz aumentar a angústia e o sentimento de injustiça dos condenados que, vendo outros trabalharem, ficam no famoso "aguardando vaga".
Mais uma vez, o apenado: "...Devido tê esse tempo todo puxado eu nunca me envolvi em bronca que futuramente podia me prejudicar..."
O preso sabe da importância de seu comportamento na execução da pena; difícil é explicar para ele o "regime integralmente fechado", dissociado do princípio de individualização da pena que norteou a Lei de Execução Penal. Pior é explicar quando o condenado submetido a esse pseudo-regime tem sua pena executada em conjunto com outros aos quais é permitida a execução em sistema progressivo, quebrando-se o princípio da isonomia pretendido pela lei, ao estabelecer a diversidade de estabelecimentos penais, pois sob o mesmo teto não poderíamos ter pessoas submetidas a regimes jurídicos diversos.
Continua o apenado falando de uma rixa com outros presos, os quais se haviam envolvido anteriormente em uma rebelião: "...nós da cozinha não dejavamos eles fazer onda na cadeia aí comesou a rinxa entre nós da cozinha e eles, a onde eles tem odio de nós que trabalhamos na cozinha, mais quando nós viemos pra cá continuamos a trabalhar na cozinha, eu estava trabalhando numa boa, eu já tinha terminado de fazer meus exames pra mudança de regime, e eu estava inpolgado, todos funcionarios gostavam de mim [...] tinha o maior asseço e não tinha motivo pra mim se meter em confusão ou qualquer bronca..."
Como vemos o condenado em questão é um "faxina", que "é o preso classificado para qualquer ocupação laboral" (Augusto Thompson, in "A questão penitenciária", Forense, 2ª Ed. 1980). Há a consciência do status especial de que goza e a valorização disso. No caso, a atividade na cozinha é a mais importante, em vista do acesso à direção, aos instrumentos que guarnecem a cozinha e principalmente em razão do melhor acesso à comida.
Para o apenado, a entrevista realizada pela Comissão Técnica de Classificação serve para levá-lo à progressão de regime, e ele não distingue entre os exames realizados para a classificação e a entrevista que visa à emissão de parecer sobre a possível progressividade. Também não entende como o estudo de sua personalidade pode influir no incidente. Para o apenado, havendo bom comportamento, o qual equivale à ausência de "bronca", o cumprimento de um sexto da pena, e realizados os "exames", a progressão deve ser concedida, e tudo fora esse entendimento é injustiça.
Segue o apenado: "...Só falaram que nós do pavilhão 3 queria matar eles, coisa que não ezistia, ai depois de alguns dias eles do pavilhão 2 morando juntos, falam na sindicance que foi eu que levava e trazia, agora levava e trazia o que [...] ai depois do depoimento desses caras, o Dr. me botou no castigo...".
A violação do "Código do Silêncio da Ética", o qual possui "regras claras sobre condutas e sanções severas às violações", como bem enfatizou Carlos Lélio Lauria ("Subcultura Carcerária", Boletim IBCCrim nº58, de setembro de 1997), é algo que todo preso afasta peremptoriamente.
Sabe o apenado que a atividade do conselho disciplinar precede a punição administrativa, mas para ele ninguém manda mais no estabelecimento do que o diretor. O contraditório, que deveria estar presente em qualquer procedimento (Art. 5º, LV, da C.F.), muito prejudicado com as atividades de assistentes jurídicos fora dos quadros da Defensoria Pública (art. 16 da L.E.P.), vinculados à administração penitenciária, não existe para o apenado.
Ainda o nosso protagonista: "...Vossa Exelência eu não entendo, a minha ficha não tem bronca alguma de envolvimento em rebelião durante quase 8 anos, aí como eu ia me envolver agora eu com um passo pro semi aberto, não tem logica Vossa Excelência. Analise com a sua experiência. Pois o que eu mais quero na minha vida é ir pro semi aberto [...] Eu posso ter errado um dia na minha vida, mais errar é humano, pior é continuar no erro [...] eu ia ficar agradecido o resto da minha vida se o senhor me desse uma chance, eu nunca ia pisa na bola com o senhor..."
O preso conhece o sistema progressivo e sabe de seu requisito subjetivo, o mérito (art. 112 da L.E.P.) e, como visto, todo o seu comportamento baseia-se na esperança de um contato maior com o meio livre.
O cidadão do direito penal não se considera à margem da sociedade, ele se considera de uma outra sociedade, subjugada, mas outra, seja quando já está preso ou quando ainda está em liberdade. A ressocialização de que ele tanto houve falar, não tem, para ele, o mesmo sentido que para nós, o de adaptação às regras do sistema político-social. Por isso que se ele ouve falar que ressocialização é trabalho, ele trabalhará, e se ele ouve falar que ressocialização é bom comportamento, ele buscará a disciplina, porque ressocialização é o termo mais próximo da liberdade que ele conhece.
Luís Carlos Valois é Juiz de Direito em Manaus, AM
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
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